Um pé de uva no Alvorada não resolve tarifa de 50%: Lula aposta no símbolo, evita a diplomacia clássica
Em vídeo publicado nas redes sociais neste fim de semana, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva aparece plantando uma muda da uva BRS Vitória nos jardins do Palácio da Alvorada, manda um recado direto a Donald Trump — “não adianta o presidente Trump taxar a nossa uva” — e convida o americano a “conhecer o Brasil verdadeiro”. O tom é performático, a mensagem é simpática; a substância, contudo, patina. O gesto rende engajamento, não solução.
O vídeo e o recado
Lula reforça o bordão “planto comida, não ódio”, diz que a uva irá para a merenda escolar se não puder ser exportada e repete que “isso aqui não é inteligência artificial”. É comunicação política calculada: com as mãos sujas de terra, o presidente busca contrastar sua imagem com a de um adversário externo — Trump — e com críticos internos que associam o governo a discursos, não a entregas. O enquadramento é eficiente; o conteúdo, discutível.
O fato concreto: há tarifa, e ela é pesada
Desde 13 de agosto, os EUA elevaram tarifas sobre uma cesta de produtos brasileiros — incluindo frutas — de 10% para até 50%. A resposta do governo foi um pacote de socorro de R$ 30 bilhões em crédito e medidas tributárias, com a promessa de compras públicas para escolas e hospitais, a fim de amortecer o impacto sobre produtores. Isso dá lastro à fala sobre merenda, mas não substitui estratégia de negociação comercial.
A uva “Vitória”: brasileira, sem semente — e não “do Vale” por origem
A BRS Vitória é, de fato, uma cultivar brasileira, sem sementes, desenvolvida pela Embrapa Uva e Vinho. É amplamente adotada no Vale do São Francisco, mas sua criação não “nasceu” no Vale: o melhoramento foi liderado pela unidade da Embrapa em Bento Gonçalves (RS), com validações em regiões tropicais e no próprio Vale. No vídeo, Lula simplifica ao atribuir a variedade “ao Vale”, confundindo difusão produtiva com origem genética.
Merenda escolar: promessa sem plano
Dizer que “a uva vai para a merenda” responde ao calor do momento, mas carece de explicação logística: volume, sazonalidade, preço por quilo, contratos, e como isso se encaixa no orçamento e nas diretrizes nutricionais do PNAE. O pacote do governo fala em compras públicas em instituições, mas a transição de mercado externo para merenda exige coordenação com estados e municípios e transparência de custos — nada disso foi detalhado no vídeo.
Diplomacia por vídeo, crise real
Ao declarar que “gostamos de todo mundo” — dos EUA à China e à Venezuela — e convidar Trump ao Alvorada, Lula tenta temperar o contencioso com cordialidade tropical. Só que o embate comercial, parte de um quadro mais amplo de tensão política entre Washington e Brasília, não se resolve com muda no gramado. Requer canal técnico, cronograma, concessões mútuas e objetivos claros.
O que ficou sem resposta no vídeo
• Qual é a estratégia de negociação com os EUA para reduzir/derrubar a tarifa sobre frutas (uvas incluídas)?
• Qual cronograma para operacionalizar compras públicas de frutas e qual o impacto orçamentário?
• Como o governo blindará produtores de perdas de renda até a próxima safra?
• Onde estão metas e indicadores (preço mínimo, volume comprado para escolas, número de produtores atendidos)?
Por que isso importa?
O Brasil exporta uva de mesa principalmente do Vale do São Francisco. A BRS Vitória, tolerante ao míldio e adaptada a climas tropicais, reduziu custos e deu competitividade à região. Uma tarifa de 50% nos EUA desloca oferta e pode derrubar preços internos, afetando pequenos e médios produtores — exatamente o público que o vídeo tenta tranquilizar.
O presidente acertou no símbolo — a “muda sem semente” rende manchete. Mas política pública não nasce de boas metáforas. Sem plano com números, a mensagem vira autoelogio com gosto de safra verde.
Por: Hamilton Silva, jornalista e economista
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