Em Israel, o desafio da mobilidade não é desenvolver tecnologias, mas aplicar
Os carros conectados, elétricos, autônomos e compartilhados estão avançando mais devagar que o previsto, dizem especialistas da indústria
Foi em 2011 que o governo de Israel resolveu atacar a dependência de petróleo e outros combustíveis fósseis. Naquele ano, o escritório do primeiro-ministro lançou um programa nacional para combustíveis alternativos e mobilidade inteligente. Na tentativa de unir academia, startups e corporações na busca por soluções, foram investidos mais de US$ 100 milhões. Oito anos depois, contudo, a frota de carros elétricos no país é imperceptível. A apesar dos patinetes rodando pelas ruas de Tel Aviv e Jerusalém, congestionamentos ainda são um problema crescente, no pequeno país de 8,7 milhões de habitantes. “Pensamos que seria mais fácil”, admite Jan Becker, CEO da Apex.ai, uma startup de sistemas para veículos autônomos. “Como houve um otimismo exacerbado, hoje parece que a tecnologia está atrasada”, diz.
O que deu errado? Anat Lea Bonshtien, presidente da Fuel Choices and Smart Mobility Initiative, afirma que o otimismo em torno da parceria entre governo, empresas e academia foi exagerado. O trabalho ganhou nova perspectiva: em vez de incentivar o desenvolvimento da tecnologia, o foco agora é trabalhar na implementação. “Precisamos encontrar formas de fechar o abismo entre a tecnologia que já temos e a realidade”, diz.
Sinal desses novos tempos, o Smart Mobility Summit 2019, que aconteceu em Tel Aviv nesta semana, valorizou mais a ação do que a inovação.
Para reduzir o número de carros nas ruas – e, por consequência, o trânsito – Anat diz que é preciso trabalhar em quatro tendências. A mobilidade do futuro, diz ela, é conectada, elétrica, compartilhada e autônoma. O caminho para chegar lá não é fácil em nenhum lugar do mundo.
Avançar na mobilidade é mais uma tentativa de colocar (e manter) Israel em posição de destaque no mundo da tecnologia. Os investimentos direcionados pela Autoridade de Inovação do país colheram frutos de fazer inveja. Hoje, as exportações classificadas como “hight tech” somam US$ 45 bilhões por ano, de um total de US$ 110 bilhões. Os investimentos em pesquisa em desenvolvimento representam 4,3% do PIB local e os investimentos feitos via venture capital somam 0,4% da economia israelense. Com a empreitada dos últimos anos da Fuel Choices and Smart Mobility Initiative, o país conseguiu atrair centros de pesquisa das maiores empresas do setor automotivo do mundo, como Ford, Toyota, GM e Renault-Nissan.
Com orçamento de US$ 500 milhões por ano, a Autoridade de Inovação tenta dar suporte a esse movimento. Segundo as estimativas, cada dólar investido na área resulta em um acréscimo de US$ 5 a US$ 8 na economia. “Não queremos que o governo interfira nos negócios e no mercado, apenas garanta capital humano, regulação e infraestrutura”, diz Ami Appelbaum, presidente do conselho do escritório.
Bernhard Maier, CEO da Škoda Auto (montadora do grupo Volkswagen), concorda que o desafio é implementar a tecnologia existente. “Já temos muitas opções de mobilidade, mas uma mudança profunda é fundamental”, diz. A mudança, afirma, depende de novos modelos de negócios, baseados no mundo digital.
A mudança também depende de como o público encara os meios de transporte. “O compartilhamento não vai acontecer sozinho. A política precisa nos dizer como chegar a um futuro melhor”, diz Daniel Sperling, professor da Universidade da California e fundador da California Air Resources Board. Para ele, as pessoas precisam ter mais opções com a comodidade do automóvel particular. “Sejamos honestos: o carro é fabuloso, nos dá segurança, flexibilidade e liberdade”, afirma. Ótimo para o indivíduo, o transporte pessoal é péssimo para a sociedade. “O modelo de propriedade do carro é um desastre. Passamos tempo demais no carro, usamos demais o carro, gastamos energia, criamos mais trânsito. Não há nada de bom para o interesse público, mas é ótimo para o proprietário”.
Estudos recentes demonstraram que serviços de ride sharing como Uber, Lyft e 99 podem colaborar para a piora do trânsito nas grandes cidades, em vez de melhorar. Para o professor Daniel Sperling, no entanto, isso não é realmente um problema. “O setor público vê apenas o impacto atual no transito. Em vez disso, podemos ver esses serviços como uma porta para o futuro, condicionando as pessoas a compartilhar o carro e, no futuro, a entender a automação”.
Um longo caminho até a automação total
Udi Remer, diretor de desenvolvimento de negócios da Mobileye afirma que a infraestrutura para a automação é cara, inviabilizando o carro particular. “Só os radares, lidares e câmeras custam, em média, US$ 20 mil a US$ 30 mil por automóvel. Por isso estamos focando em mobilidade como um serviço. Usar a automação em um táxi é mais eficiente, em termos de custo”, diz. A empresa israelense, comprada pela Intel em 2017 por US$ 15,3 bilhões, projeta oferecer um serviço de táxi autônomo em Tel Aviv a partir de 2022. Hoje, a Mobileye fornece às montadoras sistemas de auxílio ao motorista que antecipam tecnologias do carro autônomo, como leitura das placas de trânsito e das marcações no asfalto. Com radares e câmeras, o sistema tenta levar ao conhecimento do computador informações que foram pensadas, décadas atrás, para serem interpretadas por humanos.
“Está claro que se fôssemos desenhar toda a infraestrutura de mobilidade hoje, tudo seria muito diferente”, diz Ami Appelbaum, presidente do conselho da Autoridade de Inovação de Israel. Afinal, defende, o número de pessoas se movimentando pelas cidades é maior, e há mais alternativas além do carro.
“Tudo foi planejado para os carros privados, não é de se surpreender que estejamos viciados neles. É preciso facilitar a adoção do transporte público e também mudar nossa mentalidade sobre os serviços de compartilhamento”, diz Michal Reut Gelbart, CEO da ONG Future Mobility. A indústria, segundo ela, já entendeu que o futuro da mobilidade será diferente do que temos hoje e que é preciso mudar, mas ainda falta que as pessoas e os governos aceitem essa transformação.
A mudança de estratégia da Mobileye, que nasceu para substituir os motoristas mas, no curto prazo, fatura com sensores para ajudá-los, é um exemplo do rearranjo de prioridades do setor. “Nos últimos anos, várias startups que focavam apenas no nível 5 de automação [aquele em que o motorista pode dormir durante a viagem] tiveram que mudar seus modelos de negócios e trabalhar também nos níveis 3 e 4”, diz Yakir Machluf, analista de mobilidade do fundo de investimentos OurCrowd. “No setor automotivo, uma empresa já vai demorar aproximadamente 5 anos para começar a gerar receita. Se ela só pensa em carros plenamente autônomos, vai levar ainda mais tempo para gerar caixa”, afirma.
O caminho deve ser real ou virtual? Técnico ou político?
Uma das expositoras do evento, a startup Foretellix tenta abreviar a demora até o carro autônomo. Usando a mesma lógica dos testes de semicondutores, a empresa criou um software para simular diferentes condições de trânsito, a fim de descobrir — e aperfeiçoar — as reações dos carros robóticos. “Há um consenso de que criar sistemas autônomos tem se mostrado mais difícil do que o previsto. Parte disso é por causa da segurança. Testar sistemas é mais difícil do que criar”, afirma Roy Fridman, vice-presidente de desenvolvimento de negócios da startup. Para ele, em vez de contar as milhas rodadas pelos veículos em teste (como tem sido feito hoje), o setor deveria expor a inteligência artificial a uma quantidade suficiente de situações. “O sistema gera centenas de milhões de cenários e diz o quanto aquele carro já fez e o que mais precisa fazer. Até porque hoje não conseguimos dizer qual é a linha de chegada, quantos quilômetros um carro precisa rodar para ser considerado seguro”, afirma Roy. A simulação eletrônica, defende, tornaria o desenvolvimento do carro autônomo mais próximo dos órgãos reguladores.
Segundo Joshua Wilkenfeld, da Uber, a proximidade com as autoridades é importante — mas a proximidade com o público é fundamental. “Precisamos dos clientes tanto quanto precisamos dos governos”, diz. A história da empresa é um exemplo disso. Ao popularizar seu serviço de ride sharing antes de buscar aprovação dos governos, a empresa colheu desgastes, mas pautou o debate a seu favor. “O carro autônomo e um produto mais difícil e requer essa colaboração com os reguladores mas, assim que tivermos as leis, temos que ter também os clientes prontos para aproveitar o serviço”, afirma.
Se o público não gostar dos carros elétricos e autônomos, a aprovação legal será perda de tempo e dinheiro, diz Shai Agassi, fundador da falida startup Better Place, que desenvolvia baterias. “Precisamos convencer as pessoas. Não é nada fácil, essa é a segunda maior compra de uma família, atrás apenas da casa”, diz. “Os reguladores deverão incentivar a automação, assim conseguiremos ter menos carros na rua, menos trânsito e menos acidentes”, afirma.
Eletricidade sem excentricidade
Apesar de prometer vantagens, o automóvel do futuro só será aceito pelo grande público se não cobrar sacrifícios. No caso da fonte de energia, o obstáculo é bem claro: os carros elétricos perdem feio para seus similares a combustão em tempo de abastecimento, autonomia e oferta de pontos de recarga. “O consumidor quer um produto sustentável, mas não aceita o ônus se a tecnologia afetar a sua operação diária. Precisamos de uma solução que seja conveniente e eficiente para o consumidor”, diz Pierpaolo Biffali, vice-presidente da FPT Industrial.
Segundo Moran Price, cofundadora e CEO da startup israelense IRP Nexus, os carros elétricos poderão andar maiores distâncias ao melhorar ainda mais o aproveitamento de energia. “Já conseguimos alcançar um bom pico de eficiência, perto dos 95%, mas a média ainda precisa melhorar. Estamos hoje em torno de 75% a 85%, e precisamos levar esse número para perto e 90%”, diz.
O investimento na mobilidade elétrica será de longo prazo, alerta Mathias Wiecher, chefe da companhia alemã de energia E.ON. “O ritmo de renovação da frota mundial de carros é de apenas 10% ao ano. Mesmo se as vendas de elétricos aumentar, acredito que em 2030, eles vão representar apenas 20% do total”.
*A jornalista viaja a convite do Consulado de Israel em São Paulo